Em muita da mais afamada iconografia da fadista Severa (primeiro grande mito da história do fado), a cantora precocemente falecida aparece de longas saias e pose desafiadora, empunhando uma guitarra portuguesa. Nessas imagens, é invencível. Severa morreu a 30 de Novembro de 1846 e passados 160 anos a guitarra nas mãos de uma mulher continua a ser uma raridade e parece exigir a mesma atitude destemida e afirmativa.
Fora o exemplo de Luísa Amaro, discípula de Carlos Paredes, foi até há um par de anos tarefa demasiado inglória tentar encontrar outro nome que furasse essa hegemonia masculina.
Mas isso, de ser mulher num mundo sobrepovoado de homens, foi insignificante no dia em que Marta Pereira da Costa, uma empenhada aluna de piano desde os quatro anos e a caminho de se formar em engenharia civil, foi levada por insistência do pai à presença de Carlos Gonçalves para ter uma aula de guitarra.
Tinha 18 anos e o seu mundo ficou virado do avesso. Daí aos dias de hoje foi um percurso da maior dedicação e paixão pela guitarra que desagua no aguardado álbum de estreia.
Para esta aventura Marta Pereira da Costa contou com a preciosa ajuda do pianista Filipe Raposo (que consigo assina a co-produção) para dar forma a um álbum que viaja tanto pelo fado quanto pela música popular portuguesa, pela world music e pelo jazz. Nesta viagem conta com várias participações especiais, entre as quais se destacam Camané, Dulce Pontes, Rui Veloso, Pedro Joía, o conceituado baixista de jazz Richard Bona e a surpreendente cantora iraniana Tara Tiba.
Todo o álbum, no qual quatro temas são da sua autoria, espelha fielmente a natureza de Marta Pereira da Costa. É um disco feito de encontros, de partida em busca das pessoas, de homenagem àqueles que, sabendo-o ou não, a ajudaram a chegar até aqui. E é um registo arriscado e fascinante na assunção da diferença.
Não apenas por se tratar de uma mulher a reclamar o instrumento que transporta de forma inequívoca o som de Portugal, mas sobretudo porque nunca antes se ouviu a guitarra portuguesa soar assim. E esse é um dos maiores augúrios e das mais generosas contribuições para a história do instrumento: não repetir apenas o passado, mas ousar vislumbrar-lhe um futuro.